As moedas de ouro e as formigas
Por Carlos Lourenço, Professor do ISEG
Os Iorubá, gentes da Nigéria, Benim e Togo, contam há gerações a história de um homem muito pobre, mas bondoso, inclusive para com os animais, mesmo os mais pequenos, que se vê ajudado pelas formigas, que decidem, por meio de um túnel, fazer chegar à sua casa as moedas de ouro retiradas da casa de um homem muito rico, cruel para com os animais, nomeadamente as formigas, que pisa, e cuja fortuna acumulou injustamente.
Como tantas histórias ancestrais da tradição oral por esse mundo fora, esta história, que lemos cá em casa aos miúdos ao deitar, é poética e pedagógica, pejada de simbolismo, onde o pendor ambientalista, o apelo à defesa dos animais, algum misticismo natural até, se entrecruza com a moralidade, a desigualdade e a justiça social. Pensarão as crianças que seremos maus, cruéis com os animais, a natureza em geral, o planeta, enfim, ao acumularmos riqueza?
A história desenrola-se sob o pano de fundo da luta entre o bem e o mal, em paralelo com o dilema clássico da justiça social: a riqueza corrompe os homens, é justo acumular, como pode ser redistribuída de forma justa a riqueza?
Mesmo a engenhosa solução para os problemas do seu bondoso amigo encontrada pelas pequenas formigas, que lembra Robin Hood a tomar de assalto, na floresta de Sherwood, os impostos cobrados pelo Sheriff de Nottingham, e a redistribuí-los pelos mais pobres, é também ela um dilema moral.
Dilemas à parte, a solução das formigas sugere igualmente o poder transformador da solidariedade, sobretudo se organizada — “estamos nas mãos uns dos outros”, como nos lembra Tolentino Mendonça. Porque cada formiga não pode senão ser esmagada, é unidas que as formigas fazem a diferença.
E é também libertadora, a solidariedade: o homem pobre, encontrando-se preso pelos aldeões após ter sido acusado de roubo pelo homem rico, apesar de homem nenhum caber no pequeno túnel entretanto descoberto, acorda uma manhã sem paredes à sua volta, livre (ajudando-o uma segunda vez, as formigas decidem comer as paredes).
Celebrada pela 51ª vez esta sexta-feira, a liberdade, essa, não é a mesma entre nós, na medida em que não se exerce materialmente da mesma forma.
O salário mínimo nacional em 2025, por exemplo, de menos de 800 euros líquidos, é um rendimento do trabalho auferido por bem mais de 1 milhão de trabalhadores e com o qual custa viver em Portugal, sobretudo entre os que pagam uma renda ou um empréstimo à habitação, e mais ainda se o fazem sozinhos e/ou têm dependentes.* Como podem os 4 em cada 10 jovens trabalhadores independentes entre os 18 e os 35 anos que ganham até 800 euros líquidos, segundo dados do INE de 2023, emancipar-se? (43% dos alojamentos alugados na Área Metropolitana de Lisboa tinham uma renda superior a 400 euros segundo os dados dos Censos de 2021)
Esta vida difícil contrasta com os rendimentos do trabalho iguais ou superiores a 3500 euros entre os 5% dos trabalhadores mais ricos, por exemplo.
Dos impostos aos apoios sociais ao investimento na educação e saúde públicas e na preservação do ambiente, as políticas redistributivas podem assim ser vistas não só como intrínsecas à ideia de justiça mas também como uma garantia de paz social, porquanto protegem a democracia contra a polarização.
Porque elas têm o poder de conter os inevitáveis — e frequentemente temperamentais — animal spirits subterrâneos do espírito humano, que na metáfora dos Iorubá aparecem, ainda assim, como uma simpática intervenção divina do mundo natural.
*Nota: Infelizmente, o salário mínimo nacional de 1015 euros em paridade do poder de compra, em janeiro de 2025, reportado pelo Eurostat, é calculado sobre o valor bruto.