
Um avião milionário do Qatar, negócios no Golfo: poderá Trump liderar um dos Governos mais corruptos dos EUA?
Donald Trump aceitou um luxuoso Boeing 747 do Governo do Qatar, avaliado em 400 milhões de dólares, desafiando as normas éticas e legais e ultrapassando os limites do que é aceitável na política.
Há quem tenha defendido ser um caso de um conceito de patrimonalismo: um sistema de Governo que não se baseia em leis ou procedimentos, mas sim na relação pessoal com o líder. Para os líderes patrimonialistas não há diferença entre o que é público e o que é privado, o que é legal e o que é ilegal, o que é político e o que é pessoal. Tudo depende do que lhes convém em cada momento, para além da lei e até da ideologia.
Citando o filósofo pré-socrático Heraclito, que escreveu sobre a importância de compreender o mundo através dos seus opostos, na vida existem duas formas de fazer as coisas: a forma tradicional e a forma contrária. Donald Trump é o exemplo perfeito de como fazer as coisas ao contrário.
Nenhum político americano ousaria lançar uma campanha presidencial insultando uma minoria étnica, mas foi isso mesmo que Trump fez. Os políticos americanos esforçam-se por parecer “homens do povo”, por isso saem em mangas de camisa, conversam cara a cara com os eleitores num restaurante. Trump não. Exceto quando joga golfe, Trump usa sempre fato e gravata. Não é um “homem do povo”. Ele é o chefe.
É errado subornar eleitores? A campanha de Trump distribuiu literalmente cheques aos eleitores. É indecoroso gabar-se de ser rico? Não para Trump, que o faz diariamente. Os políticos devem demonstrar empatia pela dor das pessoas comuns? Trump quer que as pessoas comuns demonstrem empatia por ele, lembrando-nos constantemente das injustiças que sofre.
Como explica um dos fragmentos sobreviventes do pensamento de Heraclito, “um caminho de subida e descida é um só”. Ou seja, pode chegar ao mesmo destino fazendo o contrário.
Uma forma um pouco mais racional de compreender esta conclusão nebulosa de há 2.500 anos é que o cérebro humano aprecia as escolhas binárias. As realidades a preto e branco são muito mais compreensíveis e persuasivas do que a realidade cinzenta. O que nos leva à questão do luxuoso Boeing do Qatar .
Donald Trump, relatou o jornal espanhol ‘El Confidencial’, parece ter compreendido que, em política, é melhor ser total, aberta e repugnantemente corrupto do que vaguear timidamente na área cinzenta da legalidade. Muitos eleitores podem apreciar o pormenor: se quer ser corrupto, faça-o de forma consistente.
Isto ficou claro durante o primeiro mandato de Trump, quando as suas propriedades privadas se tornaram o cenário regular para reuniões formais e informais a todos os níveis de Governo. Durante estes quatro anos, 143 membros do Congresso visitaram os negócios de Trump em 361 ocasiões. O mesmo se pode dizer dos membros do gabinete e de 150 dignitários estrangeiros de 77 países; As propriedades da Trump Organization foram palco de reuniões com embaixadores, presidentes, ministros, eventos de angariação de fundos, etc. Além dos negócios da família Trump no Médio Oriente durante estes anos.
Estes tipos de operações são muito maiores e mais pronunciados neste segundo mandato. Mesmo antes de regressar à Casa Branca, arrecadou o comité inaugural de Trump 239 milhões de dólares — mais do dobro do recorde de 107 milhões de dólares estabelecido em 2017. Como apenas uma fração desse valor teria pago o buffet e os eventos da cerimónia de tomada de posse, quase certamente sobraram dezenas de milhões de dólares, mas para onde foram é desconhecido.
Donald Trump revelou ainda uma forma de depositar dinheiro diretamente na sua conta bancária: uma “memecoin” chamada $TRUMP. O presidente dos EUA usa-o abertamente como forma de comprar o acesso à sua pessoa. Quem investir mais dinheiro nesta criptomoeda ganhará uma visita à Casa Branca e um jantar com Trump. De acordo com um relatório do ‘State Democracy Defenders Fund’, a família presidencial possui quase 3 mil milhões de dólares em criptomoedas.
Esta é uma operação privada que, na melhor tradição patrimonial, se mistura com o público. Ao mesmo tempo que Trump criava esta forma de influência para qualquer pessoa que pudesse pagar, a sua administração desmantelou a unidade do Departamento de Justiça dedicada a investigar crimes que envolvem criptomoedas em abril.
A administração Trump demitiu ainda 18 inspetores-gerais, cuja função específica é garantir que não há corrupção no Governo federal, e ordenou ao Gabinete do Procurador-Geral que não perseguisse mais os violadores da Lei das Práticas de Corrupção no Estrangeiro. Em suma, permite que as empresas que operam nos EUA subornem dignitários estrangeiros.
A doação do Qatar é o mais recente elo de uma longa cadeia. Donald Trump tem vindo a dizer há muito tempo que quer modernizar o Air Force One, mas é um processo longo, por isso a pequena monarquia produtora de petróleo ofereceu este “palácio no céu” ao presidente dos EUA. Uma das cláusulas refere que, pouco antes de deixar o cargo, o avião passaria a ser sua propriedade pessoal.
É interessante notar que, há duas semanas, a Trump Organization anunciou a construção de um resort de luxo de 5,5 mil milhões de dólares no Qatar. É também interessante que Pam Bondi, procuradora-geral, ganhava 115 mil dólares por mês para influenciar os membros do Congresso em nome do Qatar.
Como a lei federal permite que as autoridades aceitem presentes pessoais avaliados até 480 dólares — e como uma das máximas do capitalismo americano é que “não há almoços grátis” — a ação de Trump está a ser interpretada como um claro conflito de interesses. Mas não é o único conflito.
“Aceitar um avião de um país estrangeiro, mesmo que seja um aliado, levanta muitas questões sobre a segurança nacional”, escreveu David A. Graham no ‘The Atlantic’. “Quem pode atestar a segurança do avião? Quem vai inspecionar cada centímetro do avião para garantir que não há escutas?” E isto pressupõe que o avião está em condições de operação, o que não está, como noticiou o ‘The Wall Street Journal’.
Mas há uma terceira forma de compreender esta questão dos aviões: tal como acontece noutros aspetos da sua presidência, Donald Trump está a alterar os limites do que é aceitável. As suas transgressões estão a aumentar, o que é uma forma de dizer que as regras da ética estão a resvalar pela proverbial ladeira escorregadia. Há alguns anos, era alugar algumas noites num hotel de Trump. Hoje é um Boeing de 400 milhões de dólares. Daqui a um ou dois anos não se sabe o que poderá ser.